quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Heidegger e a Psicanálise


Por mais que saibamos das nuances que fundam as bases teóricas de Heidegger e Lacan, é inevitável numa aproximação maior, não se dar conta da semelhança entre algumas idéias que permeiam o pensamento dos dois autores.

A arrogância dos psicanalistas e o desprezo dos filósofos podem encobrir algo que de alguma forma aparece como uma ponte entre a psicanálise e a filosofia. É bem verdade que em tempos de fragmentação e tecnização do pensamento, o objetivo daquilo que deveria ajudar as pessoas a elaborar as reflexões mais fundamentais (como a própria existência), a saber, as Ciências do Espírito, encontra-se há muito trivializado e esquecido pois elas se deixaram levar pelo automatismo da ténica. Isto faz com que cada vez mais as pessoas tendam a se fechar em suas "especialidades" e deixem de tentar pensar as coisas enquanto elas mesmas e, em nome de uma lógica engessante conceitual e categórica, não se permitam perceber relações por vezes tão claras como a idéia de um "mais além" que rege a vida humana tanto em Lacan quando em Heidegger.

Em Lacan temos a idéia do real como o que já sempre escapa, que já de alguma forma está sempre dado mas também sempre encoberto. O registro do real é como o pano de fundo onde se desenvolve qualquer possibilidade de idéia ou sentido, é aquilo que já está lá e sobre o qual se constrói qualquer imagem, significado, teoria como "sujeito", "mundo", "cultura", "moral", etc. Pode-se pensar como o "natural" que não traz significado nenhum por si só, mas de alguma forma está dado na medida em que oferece a "massa bruta" para a construção de nosso "mundo". Além deste registro temos o imaginário e o simbólico que constituem nosso sujeito. A via do imaginário encobre e reveste o real, como o nome diz, de imagem, nos possibilitando ver as coisas como coisas, o mundo como mundo. O simbólico é a linguagem. É o que determina todo o sentido e nos tira de um "estado natural". É o que nos permite assumir um lugar no mundo, uma identidade e nos dá um (o) sujeito. Numa analogia possível, considerando um quadro, o real seria o esboço sobre o qual se pinta e que escapa ao observador mas está lá como indicação através dos limites da pintura que o recobriu, o imaginário seriam os limites que constituiriam a imagem, a cobertura de tinta que lhe faz surgir e que lhe possibilita um sentido e o simbólico seria seu nome, o que lhe dá o sentido.

Os três registros se articulam com uma coisa fundamental que Lacan resgata de Freud: o das ding. Este das ding, esta "coisa" é chamado de objeto 'a' e diz justamente da falta de objeto. É algo além de qualquer capacidade de representação e nos coloca diante de uma falta que é constitutiva. O das ding é o indizível, aquilo que faz com que cada um seja único, que é completamente inconsciente e que dele só teremos notícia, sendo impossível encontrar objeto que o represente. Tem relação com a origem, com a morte, com a angústia, pois são questões para as quais nunca teremos resposta. É o que faz com que nunca tenhamos satisfação plena e mantém o sujeito desejante sempre. Este passará a vida toda, através dos registros do real, simbólico e imaginário, tentando inconscientemente encontrar algo que satisfaça isso que já desde sempre foi perdido. Ou seja, de todas as formas se tentará tamponar, cobrir, encobrir, velar, esta falta que é insuportável, mas que dá notícia de alguma forma sempre.

Pensando agora em Heidegger e sua analítica do Dasein, sua proposta essencialmente é responder à questão sobre o sentido do ser, que devido à sua obscuridade, sua aparente evidência e sua universalidade, foi deixado de lado em nome do desenvolvimento de um saber científico lógico, engessado, objetivo e fechado. Diante do aparente privilégio de um ente específico no tocante à relação com o ser, por estar em jogo com seu ser a cada instante, a saber, nós mesmos, o pensador alemão resolve tomar como horizonte liberador para o sentido do ser, uma analítica desse ente, o Dasein.

Na analítica do Dasein, Heidegger coloca como modo fundamental de ser desse ente, o ser-no-mundo. Este ente que a cada instante é no mundo tem uma relação de ocupação para com os outros entes que não possuem o caráter de Dasein, os chamados entes intramundanos (que são as coisas de modo geral). Nesta relação de ocupação com o mundo, o Dasein possui uma relação de instrumentalidade que é anterior a idéias como pensamento ou razão. Em seu modo de ser mais próprio ele já é na ocupação com as coisas, para então construir idéias sobre o mundo. A preocupação fundamental de Heidegger é com o âmbito ontológico, justamente com esse modo de ser fundamental, universal e primeiro.

Do ser já temos sempre certa compreensão, uma compreensão que será chamada de 'pré-ontológica', pois não o trazemos a cada instante como questão temática, por conta de nossa "familiaridade" para com ele desde sempre. Heidegger dirá que já temos acesso do ser em cada ente, mas que o ser não poderá ser apreendido por alguma teoria ou pensamento que interrompa seu fluxo. Isso se aplica aos entes em geral, e com o Dasein não é diferente. Heidegger dirá: "A analítica do Dasein não somente é incompleta como provisória.". Implica que apesar do acesso que temos a esse ser, ele sempre escapará a toda e qualquer definição possível. O ser sempre ultrapassará qualquer idéia construída a seu respeito.

Porém não se pode esquecer da relação que desde já temos com o ser. Como seria possível então essa relação se não podemos pensá-lo em sua plenitude? Novamente: nós já estamos em jogo com o ser a cada instante. Esta relação faz com que o ser apareça e se encubra, ou seja, a cada instante já temos uma compreensão de ser na medida em que ele nos escapa.

Da mesma forma que o das ding freudiano, o ser é um mais além. Na nossa relação de manualidade com as coisas nós precisamos racionalizá-las, teorizá-las, engessá-las, para apreendê-las. Não temos acesso consciente à relação mais imediata de ser-no-mundo-com-as-coisas. Assim como na psicanálise não temos acesso pleno ao real ou ao das ding. Heidegger está nos mostrando que temos este movimento de tentar roubar do velamento, mas que ao fazer isso, o ser se encobre, assim como a psicanálise mostra que usamos a cobertura do imaginário para lidar com a angústia da não representação de toda a falta. Na teoria heideggeriana a angústia surge como uma perda de mundo ôntico, ou seja, de todo sentido que a gente elaborou no trato com as coisas, é uma falta que surge diante da falta de sentido de uma realidade pura. Na psicanálise a angústia também surge quando temos esse acesso "descoberto" do real e da falta.

Resguardadas as diferenças teóricas, volto a dizer, com alguma serenidade é possível pensar uma aproximação entre a psicanálise e Heidegger, especialmente Lacan e Heidegger. Tal possibilidade é pouco levantada entre os teóricos das duas correntes, mas existem trabalhos de autores brasileiros que já trazem esse tipo de reflexão, como o Ernildo Stein e o Zejko Loparic.

O presente trabalho ainda carece de maior aprofundamento e dificilmente será levado adiante, pelo menos na graduação, mas a inquietação quanto à necessidade de lançar esta questão a outros gerou a motivação necessária para escrevê-lo. Perdão se tiver alguma confusão conceitual, especialmente diante da exposição dos conceitos psicanalíticos, dos quais ainda não tenho muito domínio. No mais, me esculhambem mas pensem um pouco!

4 comentários:

márcio disse...

um outro caminho de aproximação seria pela via do que os dois autores trazem a respeito da linguagem.Heidegger diz que em última instância quem fala é a linguagem.Inconsciente e alétheia também dão pano pra manga. legal o texto

Alma Inquieta disse...

Li e não achei nada daquelas coisas que você disse que teria para esculhambar...
Tá muito interessante, mas parece que você terminou antes do final realmente (ahh, mas isso está justificado lá)... Acho que deveria continuar! E por que não na graduação??

Ah, num tenho comentários teóricos a fazer, não resisti ao "fundamental de ser 'decente'" lá de Heidegger, tinha que comentar! =P

Germana disse...

Oi, fiquei curiosa, de quem é este texto?

Vinicius Braga disse...

Os textos do meu blog são de minha autoria, salvo no caso em que eu especifique o contrário.