terça-feira, 16 de outubro de 2012

Quem é o sujeito da ciência?

Com o movimento que se delineava ao final da Idade Média da construção de uma epistemologia que respondesse às transformações teóricas ocorridas principalmente na escolástica que deslocaram os conceitos de “Deus” e “alma” para outro sentido, surge a necessidade de um novo fundamento que respondesse a um conhecimento racional que havia se dissociado (não completamente) da fé. O pensamento do homem não mais dependia de uma “revelação” para a investigação sobre o mundo e os entes, então a noção de alma ganha uma nova conotação, como princípio unificador subjacente aos objetos através da intuição. Esta nova “condição” da alma (dissociada do corpo, colocada como intelecto finito humano) a faz ser pensada como subjectum, no sentido de uma substância (criada), na qual se deveriam adequar todo o conhecimento e produção humanos. Mas esta identidade essencial entre subjectum e alma fez surgir a ideia de subjectum enquanto uma instância, o que posteriormente levará Descartes a formular sua noção de ego, de sujeito (ou seja, o outro sentido que o subjectum adquiriu e se perpetuou até hoje no pensamento científico).

Heidegger (2009) diz, nos Seminários de Zollikon, que neste período deu-se uma inversão das noções de subjectum e objectum que haviam sido traduzidas do grego para o latim no começo do período medieval. E isso tem uma importância fundamental para se compreender posteriormente a elaboração da ideia de um “psiquismo” científico, objetificado, partindo da compreensão de subjectum como um ego substancializado como se dará em Descartes. Temos então um subjectum substancializado, objetificado como objectum, na forma de sujeito (psicofísico), e um objectum com sua verdade transcendentalizada equiparada ao subjectum, sustentada pelo absoluto (Deus) via adequação. Assim o sujeito emerge completamente dissociado do objeto, e o homem vê sua relação com a verdade do ser balançar, ou seja, sua própria relação com o mundo e com os outros é ameaçada por ser "artificializada".

Pra quem gosta de arrotar ciência como verdade absoluta...

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Por que fazer o curso de Psicologia?



Acredito que qualquer estudante de Psicologia que tenha verdadeiramente se dedicado a compreendê-la de modo mais abrangente, desde as suas raízes até suas atuais distorções, chegue ao momento de perguntar-se "afinal, por que eu fiz Psicologia?".

Podemos pensar em dois sentidos imediatos para esta pergunta: o "motivo" pelo qual fiz o curso, no sentido das expectativas que se tem (isto já está dado desde a inscrição no vestibular, não constituindo-se assim questão que careça de maiores desmembramentos); ou "para que" me serviu o curso de Psicologia. Quanto a esta questão, minha resposta hoje, depois de ter passado pela quase totalidade do curso, é imediata e bem diferente do "motivo" pelo qual fiz o curso: permitiu que eu me familiarizasse com certa linguagem que será necessária para que eu consiga um emprego na área e para ter a oportunidade de trabalhar com a clínica em um estágio supervisionado e "gratuito" (ignoro ao utilizar este termo de certa forma aqui a questão dos impostos que todos os contribuintes pagam à União e que mantem as Universidades para me fazer compreender no que interessa neste texto).

Porém a dignidade da segunda questão exige que eu vá além de uma resposta curta, e reside nas carências que, além das que qualquer outro curso possa apresentar em uma Universidade pública, são específicas para a nossa área.

A Psicologia enfrenta sérios problemas de fundamentos desde sua "fundação" como ciência, quando Wundt abriu seu laboratório em Leipzig. A Psicologia então torna-se ciência a partir do momento em que torna-se "experimental". Sobre isso dirá Husserl:

A psicologia exata não chega a ter consciência de aqui haver um grande defeito no seu procedimento, tanto menos quanto está certo que ela zela contra todos os métodos da auto-observação, e que se esforça energicamente por vencer, pelo método experimental, os defeitos deste mesmo método; mas isto significa vencer um método que aqui, como se pode provar, não é o indicado (HUSSERL, 1965, p.21).
 
É óbvio e evidente que tudo que alunos de Psicologia, em sua maioria, menos se preocupam é com isso. Dane-se de onde veio! O importante para o aluno de Psicologia é a "prática". Sobre isso:
 
Para primeiro podermos experimentar, na sua pureza, a cita essência do pensar, o que significa ao mesmo tempo, realiza-la, devemos libertarmo-nos da interpretação técnica do pensar, cujos primórdios recuam até Platão e Aristóteles. O próprio pensar é tido ali como teknê, o processo da reflexão no serviço do fazer e do operar. A reflexão, já aqui, é vista sob o ponto de vista da práxis e da poiésis. Por isso, o pensamento, tomado em si, não é “prático”. A caracterização do pensar como theoría e a determinação do conhecer como postura “teórica” já ocorrem no seio da interpretação “técnica” do pensar. É uma tentativa de reação, visando também salvar o pensar, dando-lhe ainda uma autonomia em face do agir e do operar (HEIDEGGER, 2008, p.9).
 
Claro que, estando mergulhados sob a égide do discurso de "abordagens" marcadamente presente em nossa área, diria que a maioria das pessoas da área recorrerá ao argumento de que se trata de "uma abordagem que não é a sua" para justificar sua ausência de reflexão sobre tais questões, e, assim seguir feliz em sua vida sem precisar se preocupar com os problemas da Psicologia, das Ciências, ou da Psicologia enquanto Ciência. O que é uma "resposta" compreensível devido a toda uma formação, não só no curso de Psicologia, como desde o ensino básico, como o próprio Heidegger coloca que é algo profundamente enraizado desde os gregos, e que nem atinge só a Psicologia.

Por que então trazer esta reflexão à questão sobre o curso de Psicologia? Justamente porque se trata de uma área humana. A Psicologia visa a tratar justamente daquilo que nenhuma ciência pode tratar. E mais: ao tentar se colocar como ciência se distancia ainda mais daquilo que deveria ser sua própria característica mais particular, e de seu "objeto" por excelência. Apesar de a própria ideia de uma "aplicação" já conflitue com o que Heidegger coloca, é necessário um momento para a reflexão, mesmo que seja para a escolha de uma "abordagem". E essa reflexão não pode passar batido pela questão sobre o que aquela teoria representa da realidade, do que eu penso sobre o homem, e quais são seus limites.

Acredito que boa parte desse "encobrimento" sobre essas questões tão importantes, deve-se, num nível mais imediato do que o do modelo de pensamento que influencia as políticas educacionais, à estrutura dos cursos de Psicologia. São cursos onde as disciplinas "teóricas" estão dando lugar às disciplinas "práticas", com intuito totalmente mercadológico, em uma área onde as pessoas não podem se dar ao luxo de pensar somente por esta via, visto que algumas condições próprias do trabalho psicológico exigem que se siga um "ritmo" que não é o ritmo das questões de mercado. A máxima "tempo é dinheiro" aqui só faz sentido se se considera que o tempo e o dinheiro estão colocados como fatores que auxiliam no tratamento, e isto só é possível se se tem em mente que o tempo é sempre "tempo para", é de cada um, é do sujeito.

Existe um movimento de crescimento do chamado "terceiro setor" no qual a Psicologia está se valendo para fincar-se em "áreas de atuação" nunca dante imaginadas e que não se sabe até onde vai sua efetividade. Guy Debord diz:
 
Com a automação, que é ao mesmo tempo o setor mais avançado da indústria moderna e o modelo que resume perfeitamente sua prática, é preciso que o mundo da mercadoria supere esta contradição: a instrumentação técnica que suprime objetivamente o trabalho deve, ao mesmo tempo, conservar o trabalho como mercadoria e como único lugar de origem da mercadoria. Para que a automação, ou qualquer outra forma menos extrema de crescimento da produtividade do trabalho, não diminua o tempo de trabalho social necessário na escala da sociedade, é necessário criar novos empregos. O setor terciário, de serviços, é a imensa extensão das linhas do exército que distribui e promove as mercadorias atuais; o imperativo de organização desse trabalho de suporte, com a mobilização dessas forças supletivas, decorre da própria artificialidade das necessidades relacionadas a tais mercadorias. (DEBORD, 1997, p.32).
 
Até que ponto isso está relacionado com a Psicologia só se saberá no próprio movimento das coisas, nos modos de como se dará esta formação futuramente. E parece que ela não caminha bem. Porque até agora as coisas funcionam de modo a projetar os graduandos como se fossem áreas que já estão bem implantadas, com recursos teóricos e pesquisas próprias, direcionando-os somente para o trabalho "braçal", onde não será necessário refletir sobre as próprias bases daquilo que suporta aquela prática ali, que foi transportada de outro lugar ou outra aplicação. Como não há firmeza na formação da base teórica das chamadas "abordagens", não há a devida visão crítica sobre essa transposição de um modelo prático para outro. O que redunda no fato de que se tenta negar de que haja a transposição da clínica para outras áreas, que supostamente tem seu "corpo teórico próprio" (como já cansei de ouvir), e acaba não se estudando direito nem uma coisa nem outra (nem a transposição de um modelo que não está bem sedimentado, nem a possibilidade de incorporação de um referencial outro porque ainda carece de sustentação.

As grades curriculares se modelam de acordo com isso, e se encaminham para um enxugamento teórico e consequente eliminação da necessidade de revisitar questões fundamentais que orientarão o profissional em qualquer área. Particularmente já acho que o curso de Psicologia é, em boa parte das disciplinas (senão a maioria), mera leitura de material de formação técnica/biomédica ou de pesquisa de realidades sociais outras que suscitam discussões pobres, não só pela evidente alienação, mas também porque temos a formação básica, bem como o mecanismo de seleção para o ensino superior (que perdeu seu caráter de "superior", para virar garantia de emprego) muito fracos; além de haver direcionamento irrefletido para áreas de trabalho que precisam garantir nicho. A falácia de que a Psicologia procura uma identidade unificada é facilmente desmascarada frente a tanta fragmentação.

Além disso, as disciplinas sobre os fundamentos e a história da Psicologia, e até mesmo ética, são ministradas por Psicólogos que, por já estarem vindo de um modelo que se reproduz, de uma fraca leitura filosófica, de uma formação que não priorizou uma base teórica sólida, fazem as disciplinas parecerem algo que a gente tem que "passar o mais rápido possível" para poder começar a estudar a "Psicologia de verdade".

Vale à pena ressaltar que existem profissionais dedicados e que levam o que fazem com seriedade, mesmo que estando submetidos ao modelo de pensamento científico (afinal, é necessário existir um contraponto). Acho que o mais importante é isso: responsabilidade. Com essa palavra mesmo que o referencial teórico não seja lá o ideal, algum trabalho acontece. E vejo profissionais que trabalham com um nível de comprometimento invejável e louvável, o que ainda me dá a sensação de que o curso de Psicologia ainda possa ser uma boa opção apesar de tudo.

Voltando à questão principal, vale à pena fazer Psicologia se você estiver muito disposto a lidar com todos esses problemas, se tiver simpatia pelo discurso científico, ou se achar realmente que não tem como ler livros sobre desenvolvimento humano, neurociências, teorias cognitivas, comportamentais ou filosóficas fazendo outro curso ou outra coisa da vida. Ou ainda se quiser muito trabalhar com a clínica (excetuando-se a Psicanálise, que tem uma formação específica fora da academia e não exige graduação em Psicologia), ou com testes psicológicos. No mais, aconselho a fazer outro curso que dê dinheiro mais rápido!